Educação e Sociedade em Rede

Universal Sem Totalidade: Porque a “Arca” é uma Falácia (e a Rede é a Resposta)

Enquanto muitos procuram o “Noé” da era digital na figura do indivíduo heroico que filtra o caos, uma leitura atenta de Pierre Lévy obriga-nos a uma abordagem mais sistémica. A pergunta sobre se a responsabilidade é individual ou grupal encerra em si uma falsa dicotomia. Na Cibercultura, a verdadeira revolução não é a digitalização da Arca antiga, mas a dissolução da própria necessidade de uma “Arca” totalizante.

O conceito chave que Lévy nos oferece, e que deve pautar qualquer análise académica séria sobre o tema, é o de “Universal sem Totalidade”.​

O Fim da Curadoria Centralizada
Ao contrário das culturas orais (totalidade sem universal) ou das culturas letradas/imperiais (universal totalizante, que impunham um sentido único), a cibercultura oferece-nos a presença da humanidade a si mesma, mas sem um centro semântico.​

Responder à questão do “dilúvio informativo” colocando o peso apenas na “responsabilidade individual” é redutor. O indivíduo, isolado, é incapaz de filtrar o dilúvio. A “nova Arca” não é o indivíduo; é a Inteligência Coletiva emergente da interconexão. A “filtragem preservadora” mencionada no enunciado ocorre não pela decisão consciente de um só “cidadão”, mas pela dinâmica de rede onde “as arcas trocam sinais”. A preservação do património cultural hoje é um processo algorítmico e social distribuído.​

Três Exemplos da Arquitetura de Rede
Analisando os exemplos apresentados por Lévy, podemos ver neles não apenas atos humanos, mas a emergência de uma nova estrutura epistémica:

  1. A Interconexão Generalizada (O Hipertexto Vivo): Lévy descreve a World Wide Web como um grande hipertexto onde cada documento é um nó numa rede fluida. Diferente de um livro estático, aqui o “sentido” constrói-se na navegação. A responsabilidade da filtragem transfere-se da autoria (quem escreve) para a seleção (quem liga). O “património” deixa de ser um arquivo morto para ser um fluxo vivo.​
  2. A Comunidade de Prática (O “Babillard” do Atelier): Lévy dá o exemplo do BBS da Companhia Bancária, onde profissionais partilham conhecimento e filtram informação financeira coletivamente. Aqui vemos a resposta à questão da “responsabilidade grupal”: grupos de interesse, e não indivíduos isolados, funcionam como “motores de pertinência”, validando a informação através da reputação e do uso mútuo.​
  3. A Auto-Organização do Caos (A “Etiqueta” da Rede): Nos conflitos online descritos por Lévy, vemos a emergência de leis consuetudinárias não escritas. A rede gera os seus próprios anticorpos contra o ruído (spam, flames). A “filtragem” é, portanto, um fenómeno sistémico da cibercultura.​

Síntese: Navegar é Preciso, Salvar é Coletivo
A visão de Lévy no vídeo sobre o virtual como “potência de devir” reforça esta tese: o património cultural não é algo que se guarda num porão estanque para sobreviver à chuva. Ele é algo que se virtualiza e se atualiza constantemente. A “Arca de Noé” contemporânea é, na verdade, uma flotilha. A responsabilidade individual existe, sim, mas é inócua sem a conectividade. Não somos Noé; somos os nós da rede.​

Publicado por Sérgio Trigo

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