Educação e Sociedade em Rede

Educação Digital em Questão: Transformação, Inteligência Artificial e os Limites do Ensino

Trabalho realizado pela Equipa Omega (Sérgio Trigo, Vivian Rosa, Susana Luís), no âmbito da Atividade 4 da Unidade Curricular de Educação e Sociedade em Rede.


A Transformação Digital do Ensino e da Aprendizagem

O vídeo “Digital Transformation of Teaching and Learning” oferece um cenário desafiante: propõe que a transformação digital da educação não é uma opção, mas um imperativo estrutural. Argumenta que o ensino contemporâneo exige uma rutura com modelos anteriores, integrando intensivamente tecnologias avançadas no processo educativo. Contudo, a sua força reside numa distinção crucial que frequentemente passa despercebida na literatura especializada: a diferença entre “Hard Technologies” (infraestruturas técnicas, plataformas, algoritmos) e “Soft Technologies” (competências docentes, modelos pedagógicos, capacidade de inovação institucional).

Esta distinção não é meramente semântica. Implica que a transformação digital não é um simples problema de aquisição de dispositivos ou softwares, mas de refundação dos processos educativos numa lógica de “tecnologia integrada”. Contudo, o vídeo não escapa a uma armadilha conceptual muito contemporânea: a tendência de assumir que “mais tecnologia” produzirá automaticamente “melhor educação”. A história sugere o contrário. A integração de tecnologias sem uma reflexão profunda sobre pedagogia, sobre o papel do professor e sobre as necessidades específicas de cada comunidade educativa pode resultar em processos de difusão tecnológica que exacerbam desigualdades e alienação.

O vídeo identifica também um risco epistemológico que merece atenção: a substituição gradual das “Humanidades” (isto é, do estudo das dimensões qualitativas, relacionais e interpretativas da experiência humana) por uma lógica algorítmica. Quando a educação se estrutura em função de “competências mensuráveis” e “aprendizagens que podem ser quantificadas”, há um risco real de que dimensões fundamentais da formação humana (criatividade, ética, capacidade de diálogo com a alteridade) sejam marginalizadas. O professor, neste contexto, não desaparece, mas sofre uma transformação: deixa de ser transmissor de conteúdos e torna-se “facilitador” de interações mediadas por tecnologia. Esta é uma mudança significativa, mas que exige formação, reflexão crítica e condições de trabalho adequadas, nem sempre presentes nos sistemas educativos reais.

Finalmente, o vídeo não estabelece com clareza uma questão política fundamental: quem define os parâmetros da transformação digital? Que interesses corporativos e ideológicos se escondem por trás da retórica da “inovação”? A transformação digital pode ser genuinamente educativa ou um mecanismo de captura das instituições de ensino por lógicas de mercado que priorizam eficiência e rentabilidade sobre qualidade e humanidade da educação.


Os Paradoxos da Inteligência Artificial na Educação

O vídeo “AI AND THE FUTURE OF EDUCATION” coloca frente a frente questões que não possuem respostas fáceis. Mais precisamente, articula uma série de paradoxos estruturantes que caracterizam a relação entre Inteligência Artificial e educação. Identificamos quatro dimensões particularmente reveladoras:

Paradoxo 1: Personalização vs. Padronização Algorítmica. 
O discurso dominante promete que a IA permitirá personalizar a educação em função das necessidades de cada aluno. Contudo, a própria lógica de funcionamento dos algoritmos assenta em categorização, profilagem e agrupamento de padrões comportamentais. O resultado pode ser uma “padronização maquinada”: a ilusão de personalização mascarando, na realidade, uma nova forma de normalização. Os alunos são categorizados em função de perfis pré-determinados e as recomendações educativas tendem a reproduzir e reforçar padrões já existentes.

Paradoxo 2: Autonomia Intelectual vs. Heteronomia Algorítmica. 
A promessa é que a IA libertará os alunos da transmissão passiva, permitindo-lhes maior autonomia cognitiva. Porém, simultaneamente, advoga-se a integração massiva de “assistentes inteligentes” que mediam a interação pedagógica. O resultado pode ser o oposto do pretendido: uma heteronomia aumentada, onde a própria autonomia intelectual fica subordinada a sistemas de recomendação que o aluno compreende apenas parcialmente.

Paradoxo 3: Educação como Direito Social vs. Educação como Produto Comercial. 
O documentário aborda o facto de que as soluções em Inteligência Artificial vêm maioritariamente do setor privado. As grandes empresas tecnológicas definem a agenda, comercializam “soluções educacionais” e lucram com dados gerados pelas atividades educativas. Coloca-se, portanto, uma questão política não resolvida: será que a educação financiada por recursos públicos e conceptualizada como direito fundamental é compatível com modelos educativos mediados por tecnologias privadas, cujo desenvolvimento assenta em lógicas de lucro?

Paradoxo 4: Aprendizagem Contínua vs. Precarização Existencial. 
O vídeo defende que a capacidade de “aprender a aprender” e de se reinventar continuamente é fundamental. Contudo, isto implica também uma vida de “transformação permanente”, onde as qualificações se tornam rapidamente obsoletas e onde a pessoa fica condenada a um estado de “precária atualização”. Isto não é educação emancipadora; é, potencialmente, um mecanismo de precarização da existência.

Para além destes paradoxos, o vídeo identifica uma questão epistemológica profunda: o que significa “conhecimento” numa era em que a IA consegue processar e sintetizar informação de formas que ultrapassam a capacidade humana? A educação pode tornar-se meramente instrumental, focando-se em “competências” que a máquina não consegue replicar (criatividade, empatia, ética), enquanto abandona a transmissão de uma compreensão profunda e reflexiva da realidade. O conhecimento deixa de ser um bem em si, conceptualizado como relacional, contextual e humano, e passa a ser uma commodity: aquilo que tem valor é apenas aquilo que é convertível em capital económico ou capital humano mensurável.

Uma conclusão importante: a IA não é o problema; o problema é como a IA é conceptualizada, desenvolvida e integrada em sistemas educativos já marcados por desigualdades estruturais. O vídeo oferece um reconhecimento crítico destes impactos, mas também sinaliza que a educação não pode ser substituída por tecnologia. A relação pedagógica continua a ser uma dimensão profundamente humana que exige diálogo, compreensão mútua e um compromisso ético com o desenvolvimento integral da pessoa.


Os Limites da Aprendizagem em Contextos de Crise

O vídeo “The Limits of Learning: Kids in Crisis” oferece um retrato honesto e perturbador da realidade educativa durante a pandemia COVID-19 na Alemanha. O seu mérito reside em trazer para o centro da discussão académica algo que os discursos tecno-otimistas frequentemente escondem: o impacto devastador que eventos de rutura social têm sobre a educação quando esta é conceptualizada apenas como transmissão de conteúdos.

O documentário identifica com precisão as fragilidades estruturais de sistemas educativos que já estavam em crise muito antes da pandemia. Revela como a transição abrupta para o ensino à distância, durante o confinamento, exacerbou desigualdades profundas: nem todos os alunos tinham espaço adequado, acesso à tecnologia ou apoio familiar para estudar em casa. Mas o vídeo vai mais longe. Demonstra que a educação não é apenas um “mecanismo de transmissão de conhecimento”. É também um espaço de socialização, de desenvolvimento de competências emocionais e sociais, de suporte psicológico. Quando a escola fecha, fecha-se não só um local de aquisição de conhecimento, mas um espaço de pertença comunitária.

As evidências que o documentário apresenta são perturbantes: desmotivação massiva, ansiedade e depressão em populações adolescentes, fracasso escolar e isolamento social. Mas, mais importante ainda, o vídeo questiona as “soluções pedagogicamente mais concretas” que foram propostas: maior volume de trabalhos de casa, pressão aumentada, culpabilização de alunos e famílias. Estas não resolvem o problema; agravaram-no.

Há também uma dimensão política que o vídeo levanta, ainda que de forma subtil: a educação é frequentemente utilizada como instrumento para resolver desigualdades sociais, quando, na realidade, a educação por si só não consegue compensar fracassos estruturais em saúde pública, em apoio social ou em distribuição de recursos. O documentário sugere, através das histórias reais de estudantes, que políticas educativas integradoras devem ser pensadas em articulação com políticas de bem-estar, de equidade social e de reconhecimento da multidimensionalidade da existência humana.

Uma conclusão que se impõe com força: qualquer agenda de transformação digital da educação que não tenha em conta estes limites, que não reconheça que a aprendizagem é fundamentalmente um processo social e emocional, para além de cognitivo, corre o risco de ser não apenas ineficaz, mas também prejudicial. A Educação 4.0, a Inteligência Artificial, as tecnologias mais sofisticadas: nenhuma delas consegue resolver os problemas identificados neste vídeo. O que se exige é uma renovação pedagógica profunda que coloque, novamente, a humanidade e o bem-estar integral da pessoa no centro das preocupações educativas.


Referências

Buskell, A. (2021). Digital transformation in education [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=nzAhzQ5S2OQ

Selwyn, N. (2015). Education and technology: Key issues and debates (2ª edição). Bloomsbury Academic.

Seprox. (2023). AI AND THE FUTURE OF EDUCATION. Will Robots Replace Teachers? [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=-d2VRgej_cY

Vasconcellos, P. (2023). The limits of learning: Kids in crisis [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=q6VkScJ_rW8

Publicado por Sérgio Trigo

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